terça-feira, dezembro 07, 2010

Terça-feira Santa

O despertador tocou às sete horas em ponto; às sete e dez eu já havia levantado. Me arrumei com calma, separei minha marmita e saí. Peguei o ônibus; quarenta minutos depois, desci no terminal. Andei três quarteirões e cheguei à loja mais ou menos dez pras nove. Como de costume, liguei as luzes e os equipamentos, recolhi e organizei os materiais do dia anterior. Destranquei a porta principal e me acomodei no meu posto do balcão. Era véspera de natal e a cidade estava vazia, então quase não havia movimento e tudo parecia em paz. Passei a manhã sentada em minha cadeira com um sentimento de tranqüilidade dentro do peito; conseguia - apesar do sono que me batia hora ou outra - pensar muito claramente e até o silêncio e a luz entrando pela janela me pareciam inevitavelmente nostálgicos. Eu gastava as horas entretida em um livro e, apesar das interrupções esporádicas dos poucos clientes que apareciam, nada seria capaz de me perturbar naquele momento. O relógio foi chegando perto do meio-dia e tudo estava de fato muito agradável. Eu lia as últimas páginas do livro e estava profundamente compenetrada na história e nos meus pensamentos.

Tudo estava ótimo, até que ela entrou pela porta.

Logo que a vi, já pude prever o que aconteceria. Conforme ela se aproximava, toda a paz que me cercava sumiu, como que em uma fuga desesperada; eu quase fiz o mesmo. Não poderia ser diferente, logo que chegou ao balcão, sua boca abriu e aquele som estridente que ela ousa chamar de voz ecoou por todo o vazio da loja, cortando o silêncio como alguém que rasga uma seda no meio. Fiz de tudo para tentar evitá-la, ignorá-la. Quem sabe, pensei eu, por algum milagre, ela resolve ter bom senso. Maldita ingenuidade. Mal entrou no balcão e já foi se apossando do espaço, espalhando suas tralhas e contando casos atrás de casos: o acidente de carro, o ônibus atrasado, o décimo terceiro que ainda não chegara e os salgados da lanchonete local que estavam sempre frios. Eu tentei me conter, mas aquilo foi me tirando a razão. Não conseguia ler sequer uma linha sem perder a concentração pela metade e precisar relê-la do começo. Eu devia fazer algo!, tomar uma atitude em relação àquela petulância toda.

Me levantei em um salto e ela parou por um segundo, mas mal se importou e logo voltou a tagarelar. A expressão de seu rosto era uma das coisas mais irritantes que já tive o desprazer de conhecer. Ela permanecia em seu monólogo e eu fui me aproximando aos poucos. Seus olhos estavam voltados para as fichas cadastrais, as quais ela passava e repassava entre os dedos sem o menor propósito enquanto se balançava na cadeira, fazendo com que a mola gemesse repetitivamente; me aproveitei da distração para dar o bote final.

Quando segurei seu pescoço fino e flácido entre os meus dedos, a voz cessou de imediato e a face se voltou para mim, aterrorizada e com ar de indignação. Na medida em que eu fechava a mão, afundando-a entre uma veia verde e meia dúzia de rugas, o lábio foi se tornando púrpura e os olhos incharam para fora como os de um gato atropelado. O sino da porta soou, indicando a entrada de algum cliente; avistei através do balcão um senhor grisalho, de casaco e chapéu marrons. Me abaixei, arrastando-a para fora da cadeira. Ela se debatia um pouco e eu a segurei no chão com todo o meu peso; não sei ao certo se tentava falar ou respirar, mas o silêncio era reconfortante demais e segurá-la valia o risco no momento; apertei-a com mais força para abafar os ruídos. O senhor até então olhava em volta, à procura de alguém para atendê-lo. Dois minutos se passaram e ele pareceu desistir da idéia e começou a fuçar em mercadorias aleatórias, vagando pelas prateleiras. Permaneci abaixada no balcão enquanto sentia a respiração da mulher ceder aos poucos. Por fim, as fichas deslizaram dos dedos mortos direto no piso de madeira. Me aproximei de sua boca para ter certeza de que não existia trânsito de ar em seus pulmões. Nada. Sutilmente, deitei sua cabeça no chão e me afastei, tomando cuidado para não fazer nenhum barulho.

Retirei meu uniforme e coloquei minha roupa casual - creio que demorei quase dez minutos para fazê-lo. Peguei minhas coisas e engatinhei até o lado direito do balcão. O senhor olhava os tabuleiros próximos à porta, de costas para mim. Me levantei, desamassei as roupas, prendi os cabelos e fui, passo por passo, até a saída. "Boa tarde", disse ele. Respondi com um aceno cortês de cabeça e um sorriso. O corpo continuava lá, imóvel. Saí da loja e fui almoçar.

3 comentários:

  1. Olha lá, hein?
    Advogado custa caro.

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  2. huhu! Muito bom.
    entendo um pouco melhor o texto conforme vou lendo sobre o subsolo, de fato. Mas adorei, amor. Ótimo! =******

    (te amo muito)

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  3. sem palavras... legal pra caralho

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